Em uma conversa de duas horas, a dupla abordou história, política e guerra. Observadores ucranianos e russos dizem que foi simplesmente propaganda.
O presidente russo, Vladimir Putin, disse ao jornalista conservador norte-americano Tucker Carlson que acabar com a invasão da Ucrânia por Moscovo, que já dura quase dois anos, é “simples”.
Na sua primeira entrevista com um repórter ocidental desde que a invasão em grande escala da Ucrânia começou, há dois anos, o Kremlin escolheu a dedo Carlson, uma antiga estrela da Fox News que se tornou comentador online.
A razão é óbvia – Carlson caracterizou a guerra Rússia-Ucrânia como uma “disputa fronteiriça”, apelou aos americanos para cortarem pacotes de ajuda multibilionários a Kiev e comparou o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy a um “rato” e um “cafetão”.
Durante a entrevista de duas horas gravada numa sala de audiências do Kremlin com mobiliário dourado, Carlson não pressionou Putin da mesma forma que costumava criticar os convidados pró-democratas no programa da Fox News do qual foi despedido no ano passado.
O objectivo de Putin parece óbvio – ele queria que Carlson exortasse os republicanos a deixarem de apoiar a Ucrânia e a concentrarem-se nos problemas internos.
“Há problemas na fronteira, problemas com a migração, problemas com a dívida nacional”, disse Putin a Carlson, que pareceu crédulo e envergonhado durante a maior parte da reunião. “Você não tem nada melhor para fazer, então deveria lutar na Ucrânia? Não seria melhor negociar com a Rússia?”
Quando Carlson perguntou se Putin poderia simplesmente ligar para o presidente dos EUA, Joe Biden, para “resolver o problema”, Putin recusou – mas disse que a solução era “muito simples”.
“Se você realmente quer parar de lutar, precisa parar de fornecer armas. Isso terminará dentro de algumas semanas. É isso. Então poderemos concordar com alguns termos”, disse ele.
Carlson nem sequer tentou refutar as afirmações bizarras e infundadas de Putin.
Uma delas era a crença de Putin de que os líderes eleitos não governam os Estados Unidos.
“Então, duas vezes você descreveu presidentes dos EUA tomando decisões e depois sendo prejudicados pelos chefes de suas agências. Então, parece que você está descrevendo um sistema que não é administrado pelas pessoas eleitas, segundo você diz”, disse Carlson.
“Isso mesmo”, disse Putin sem oferecer mais explicações – e Carlson concordou prontamente.
Depois perguntou a Putin quem estava por trás da explosão de 2022 no Mar Báltico que danificou o Nord Stream, um gasoduto de gás natural da Rússia à Alemanha que era crucial para os cofres de Moscovo.
Carlson chamou-lhe “o maior acto de terrorismo industrial de sempre”, mas não contestou a afirmação de Putin de que foi a CIA quem alegadamente explodiu o oleoduto – e não apresentou qualquer prova concreta.
Uma aula de história ou tropos cansados?
Putin começou a entrevista com uma longa palestra sobre a história da Europa Oriental, na qual reiterou a visão manipuladora do Kremlin sobre a Rússia de Kiev, uma superpotência medieval cuja desintegração gerou a atual Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.
Carlson parecia completamente ignorante sobre o assunto – e continuou a acenar com a cabeça, perplexo, quando Putin lhe contou sobre um príncipe viking chamado Ruric, cujos descendentes governavam a Rússia de Kiev. Um deles, o príncipe Vladimir, converteu-se ao cristianismo ortodoxo há um milénio.
De acordo com a lógica de Putin, a Rússia era o único sucessor legítimo da Rússia de Kiev, e a própria ideia da Ucrânia foi “inventada” pelo arquirrival da Rússia czarista – a Áustria.
“Antes da Primeira Guerra Mundial, o Estado-Maior austríaco confiava nas ideias da ucranianização e começou a promover ativamente as ideias da Ucrânia e da ucranianização”, disse Putin.
Para o público de Carlson e para muitos no Ocidente, a palestra pode parecer chata e irrelevante.
Mas para os ucranianos, a interpretação dos acontecimentos feita por Putin é um lembrete preocupante e ameaçador de que o Kremlin nega o próprio direito de existência da Ucrânia.
“Porque todas essas anedotas sobre o príncipe Vladimir e Rurik têm apenas uma coisa para dizer a todos os céticos: este homem tem ideias obsessivas”, disse Maria Kucherenko, da Come Back Alive, uma instituição de caridade com sede em Kiev.
“E ele não vai parar por nada para torná-los reais”, disse ela à Al Jazeera.
Autoridades e figuras públicas ucranianas que se encontraram cara a cara com Putin há muito que sustentam que o presidente russo está determinado a subjugar e aniquilar a Ucrânia, aconteça o que acontecer.
“Ele é duro e se comporta como se tivesse um poder quase divino, em particular sobre a Ucrânia”, disse Yuriy Vitrenko, que chefiava a Naftogaz, a empresa estatal de energia da Ucrânia, a este repórter em 2021, relembrando seus encontros com Putin.
Putin reiterou as suas antigas afirmações de que a Ucrânia de hoje é um “Estado artificial” criado pelo ditador soviético Josef Estaline, que anexou áreas na Polónia, Hungria e Roménia, tornando-as parte da Ucrânia Soviética.
Putin também sugeriu que a Hungria, cujo timoneiro nacionalista Viktor Orban continua a ser o líder mais pró-Rússia dentro da União Europeia, “tem o direito de retomar as suas terras”.
Um observador comparou as intenções de Putin às do ditador nazista Adolf Hitler, que desencadeou a Segunda Guerra Mundial ao anexar áreas na Europa Oriental que eram povoadas por alemães étnicos.
“Penso que a resposta ao seu hitlerismo por parte das elites norte-americanas e europeias será resolutamente dura e levará a mais ajuda militar à Ucrânia”, disse Nikolay Mitrokhin, da Universidade Alemã de Bremen, à Al Jazeera. “Aqui Putin trabalhou para Biden tentando animar o público de Trump.”
Para outros observadores ucranianos, a entrevista não ofereceu nada além de clichês cansados do Kremlin.
“A única coisa notável nesta entrevista é o tamanho da mesa – é minúscula! O resto já vimos e ouvimos um zilhão de vezes”, disse Svetlana Chunikhina, vice-presidente da Associação de Psicólogos Políticos, um grupo em Kiev, à Al Jazeera.
“O maldito Carlson do Tucker serviu muito bem como pedestal de microfone para o maníaco maluco que durante duas horas divagou sobre como adora matar ucranianos.”
Para um observador russo, a entrevista é um golpe de relações públicas do Kremlin destinado a convencer os russos comuns de que a guerra de Putin não transformou a sua nação num pária internacional rejeitado pelo Ocidente.
“Eles querem mostrar que a Rússia não enfrenta o mundo civilizado, mas apenas as elites separadas dentro dele. Para enfatizar que existem outras elites, e aqui está um jornalista conhecido entrevistando [Putin]”, disse Sergey Biziyukin, um ativista da oposição exilado da cidade de Ryazan, no oeste da Rússia.
“E isso uma vez [these elites] vencer as eleições, o Ocidente admitirá que a Rússia tem razão”, disse ele à Al Jazeera, referindo-se à possível vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de Novembro e ao recente sucesso de vários grupos nacionalistas e de extrema-direita na Europa.
O momento da entrevista foi crítico para a Ucrânia.
Na quarta-feira, os republicanos bloquearam um pacote de ajuda multimilionário que era crítico para Kiev – enquanto Zelenskyy anunciava a sua decisão altamente polémica de despedir Valerii Zaluzhnyi, o general altamente confiável e influente.
No entanto, para os militares ucranianos, a entrevista nada mais é do que uma demonstração de fraqueza.
“Eles são dois perdedores que tentam apoiar um ao outro, tentando expressar suas teorias conspiratórias”, disse Valentin, um operador ucraniano de drones estacionado na região leste de Donetsk, que assistiu a partes da entrevista em seu celular.
“Eles não podem encarar a verdade sobre a Ucrânia, que é real e prevalecerá”, disse ele à Al Jazeera por telefone.
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